Resenha do livro O CUIDADO NECESSÁRIO [BOFF, Leonardo.]
Resenha[1]
de: BOFF, L.[2]
O cuidado necessário: na vida, na
saúde, na educação, na ética e na espiritualidade. Petrópolis, RJ: Vozes. 2012.
p. 1-287.
Por:
Éder Billy Carvalho[3]
Em
“O cuidado necessário”, Leonardo Boff discorre sobre a natureza, a importância,
e as implicações do cuidado, nos relacionamentos humanos (saúde, afetos,
educação, etc.), na espiritualidade, e na relação com a Terra como um todo
(natureza, criação, universo).
Para quem conhece a
militância do autor, era de se esperar que uma das palavras mais importantes
nesta obra fosse sustentabilidade. Boff
apresenta sustentabilidade em relação com cuidado.
Se a
sustentabilidade representa o lado objetivo, ambiental, econômico e social da
gestão dos bens naturais e de sua distribuição, o cuidado denota seu lado
subjetivo, as atitudes, os valores éticos e espirituais que acompanham todo
esse processo, sem os quais a própria sustentabilidade não se realiza
adequadamente (p. 21).
Sustentabilidade
“significa o uso racional dos recursos escassos da Terra, sem prejuízo do
capital natural, mantido em condições de sua reprodução e de sua coevolução,
considerando ainda as gerações futuras que também têm direito a um planeta
habitável” (p. 20). Por que dar importância ao cuidado e à sustentabilidade?
Simples: “ou fazemos uma aliança global para cuidar uns dos outros e da Terra,
ou corremos o risco de nossa autodestruição e da devastação da diversidade da
vida” (Unesco, 2003). Com efeito, “o cuidado se impõe para garantirmos a vida e
sua continuidade” (p. 38). Boff elenca razões científicas para justificar o
cuidado:
Já soou o alarme
ecológico. O consumo ultrapassou 30% a capacidade de reposição dos bens e
serviços da Terra. Em outras palavras, o planeta vivo, Terra, está perdendo
sustentabilidade. A biodiversidade diminui dia a dia. São mais de cinco mil
espécies de seres vivos que anualmente desaparecem definitivamente da face da
terra. A escassez de água potável (só 0,7% dela é acessível ao consumo humano)
constitui uma ameaça à vida de milhões e milhões de pessoas e a todos os seres
vivos que precisam dela para sobreviver (p. 259).
O autor começa a
definir cuidado como “uma arte, um paradigma novo de relacionamento para com a
natureza, para com a Terra e para com os seres humanos” (p. 21). Porém o
sentido de cuidado será explanado ao longo de toda a obra. “Cuidado é uma
atitude de relação amorosa, suave, amigável, harmoniosa e protetora para com a
realidade pessoal, social e ambiental” (p. 35). Cuidado como
preocupação com
aquilo ou com quem nos sentimos ligados afetivamente; o cuidado como precaução
e prevenção diante do futuro que pode nos trazer surpresas desagradáveis e
efeitos danosos; e, por fim, o cuidado como holding,
aquele conjunto de medidas e suportes que garantem segurança e paz (p. 127-128).
E ainda:
Cuidar consiste
em uma forma de viver, de ser, de se expressar; é uma postura ética e estética
frente ao mundo; é um compromisso com o estar-no-mundo e contribuir com o
bem-estar geral, na preservação da natureza, na promoção das potencialidades,
da dignidade humana e da nossa espiritualidade; é contribuir na construção da
história, do conhecimento da vida (p. 227).
Boff cita o pediatra e
pensador Winnicott, com sua teoria de base, o holding, que se traduz pelo
conjunto de
dispositivos de apoio, sustentação e proteção, sem os quais o ser humano não
vive. É da essência humana [...] a care
(o cuidado), que se expressa nestes dois movimentos indissociáveis: a vontade
de cuidar e a necessidade de ser cuidado. Isso é patente na relação mãe/bebê.
Este precisa de cuidado sem o qual não vive e subsiste. E a mãe sente vontade e
tem a predisposição de cuidar” (p. 30).
O cuidado é necessário
no nível individual (cuidar de si e do outro) e no nível social e geral (cuidar
da comunidade e da Terra), conforme a exposição do capítulo seis. As atitudes
do cuidado humano devem contemplar o corpo e a alma, compreendendo o ser humano
como uma realidade integral (homem-corpo e homem-espírito – p. 159; p. 187).
Preocupado com a vida e
o futuro da Terra, Boff desafia e incentiva ações urgentes de precaução e
prevenção. Na precaução se revê o que se está fazendo e que ameaça a terra, e
na prevenção se estuda antecipadamente determinadas ações, afim de sequer
iniciar algo que possa prejudicar as condições de vida das próximas gerações.
A base da argumentação
do autor em prol da Terra é construída através do conceito de terra como Mãe Terra
e Gaia, isto é, “um superorganismo vivo, que se autorregula e auto-organiza,
respeitando seus ciclos” (p. 33), e da qual fazemos parte indissociavelmente. O
homem é filho da Mãe Terra. O autor luta pelo reconhecimento da dignidade
intrínseca da Terra, pois assim, “poderá ser iniciado um novo tempo, o da
biocivilização, na qual a Terra e a humanidade reconhecem a recíproca, a origem
e o destino comuns” (p. 88). Portanto, toda a violência que praticamos contra a
Terra, praticamos contra nós mesmos. Para solidificar tal argumentação, Boff
faz a seguinte leitura científica da vida:
Como Terra
existimos já há 4,44 bilhões de anos, uma floração feliz de um processo
evolucionário que começou há 13,7 bilhões de anos, quando surgiu o universo que
conhecemos. Há 3,8 bilhões de anos irrompeu, de algum pântano ou mar primevo, a
vida. Há 125 milhões de anos emergiram os mamíferos, a cujo gênero pertencemos,
e com eles nos veio o afeto, o carinho e o amor. Há uns 70 milhões de anos
emergiu nosso ancestral, que vivia na copa das árvores para escapar da
voracidade dos dinossauros. Há 17 milhões de anos já nos separávamos dos
primatas e nos fizemos antropoides, com traços que apontavam para a futura
humanidade. Há 7 milhões de anos já éramos humanos, portadores de consciência e
inteligência. E há 100 mil anos somos plenamente humanos, com um cérebro
extremamente complexo, capaz de suportar um espírito cujo voo não se limita a
este mundo, mas alcança as estrelas e se abre ao Infinito (p. 256).
Diante
disso, sem se preocupar com a tradição da teologia bíblica, Leonardo Boff
mostra que o homem veio da Terra, do Universo, e portanto é parte dele – responsável
e cúmplice – é filho e hóspede, e não senhor e dono. Tendo evoluído dos
mamíferos, possui a razão cordial: o sentimento, o afeto e o carinho. No
decorrer da evolução adquiriu também a inteligência intelectual e racional. É
portanto, o único ser vivo, filho da Mãe Terra, capaz de cuidar da natureza,
dos seres vivos e de si mesmo (p. 79), através da razão cordial (coração) [pathos – anima] e da intelectual [logos – animus] (p. 83-84). Suprimir uma em detrimento da outra é um erro.
Exemplo disso é que a humanidade iniciou a maior onda de violência contra o
sistema-Terra quando exaltou a Razão soberanamente sobre o coração. Nesta fase
da história Boff diz que imperou o paradigma da conquista, o qual precisa ser
urgentemente substituído pelo paradigma do cuidado, que por sua vez também
oferece oportunidades de avanço e crescimento – porém de uma forma nobre e
responsável.
O
livro parte para a conceituação do cuidado na filosofia. Em Heidegger, segundo
Boff,
a verdadeira
tarefa da filosofia deve se orientar pelo cuidado de si. Para ele (Heidegger),
a realidade somente ganha seu sentido original quando interpretada como cuidado
e como preocupação inquieta de si mesmo. [...] Do estudo de Santo Agostinho
tira o conceito que vai aparecer em Ser e
tempo acerca do “cuidado autêntico”. É aquele que cuida de si e, na
liberdade realiza as possibilidades de se autoajudar (numa perspectiva de
futuro). Também deriva dele o “cuidado inautêntico”, que é cuidar de si de
maneira obsessionada, ocupando-se de tudo e menos de si mesmo, ou cuidando do
outro de modo a torná-lo dependente e até submisso (p. 49).
Através
do estudo das cartas de São Paulo, Heidegger dá vida à expressão “o cuidado
angustiante” e “a preocupação angustiada”. Jesus disse: não vos preocupei [cuideis]
dizendo: “o que haveremos de comer e vestir? Não vos preocupeis [cuideis] com o
dia de amanhã” (Mt 6:34-35). Com isso, Heidegger não está dizendo que é
totalmente ilícito preocupar-se. Ele está pontuando que o ser humano por si
mesmo (com suas próprias forças) não consegue livrar-se da inquietação e
preocupação diante do futuro. Sua única chance é fazer do Reino de Deus sua
preocupação primeira, então as demais preocupações e cuidados quanto às
incertezas do futuro (a ansiedade e o cuidado angustiante) serão superadas. A
fé do cristão lhe relembra que sua vida está na palma da mão de Deus. Por que
se angustiar?
Estudando Aristóteles,
Heidegger vai adiante e diz que o cuidado é a condição primeira do ser humano em
relação ao mundo. O cuidado
é a fonte prévia
de todos os comportamentos possíveis, sejam práticos, teóricos, conscientes ou
inconscientes. Pelo fato de o ser humano ser portador de cuidado essencial,
cria-se a condição para ele sentir-se conscientemente como um ser-no-mundo.
[...] É, portanto, mais que uma mera inquietação; é a estrutura originária do Dasein, da existência humana, no tempo e
no mundo. Ser homem/mulher é ser constituído de cuidado (p. 53).
Boff cita as palavras
do próprio Heidegger: “o cuidado significa um fenômeno ontológico existencial
básico”.
Saindo
da filosofia e partindo para uma área mais prática, com base no que já expôs,
Boff pergunta: O que é preciso fazer para cuidar da Mãe Terra? Sua resposta
baseada na Carta da Terra é: respeitar,
reduzir, reutilizar e reciclar tudo o que é consumido. Rejeitar propagandas que
incentivem o consumo insano e reflorestar o máximo possível os muitos estragos já
feitos (p. 98). Além disso, trabalhar na produção de produtos orgânicos –
excluindo transgenia e agrotóxicos. Outra iniciativa é o extrativismo, isto é, extrair solidariamente sem derrubar a
floresta, aproveitando e preservando seus frutos, substâncias, óleos e outros
ingredientes para cosméticos. São medidas práticas com vistas ao bem-viver, um ética de visão holística
do ser humano na grande comunidade terrenal, sustentada sobre a decência e a
suficiência para toda a comunidade, e não apenas e egoisticamente para o indivíduo
ou minorias privilegiadas. O bem-viver
busca um caminho de equilíbrio e “uma profunda comunhão com a Pacha Mama
(Terra), com as energias do universo e com Deus” (p. 105) – conceito extraído
da sabedoria dos andinos.
O
cuidado na ética social é abordado também em termos e conceitos jurídicos e
filosóficos. Leis que não contemplam certos desfavorecidos e marginalizados da
sociedade, beneficiam a violência moral e prejudicam a prática do cuidado. Quando
isso acontece, enquanto não se resolve o problema jurídico, Boff diz, baseado
em Tomás de Aquino, que “acima da justiça está o amor à humanidade e a todos os
seres. O amor ao próximo é a regra de ouro, a suprema norma da conduta
verdadeiramente humana” (p. 125). E qual a importância da justiça? No nível pessoal,
justiça significa o conjunto de virtudes que possibilita relações harmoniosas
com toda a realidade que nos cerca. No nível social, refere-se à promoção do
bem comum por parte das instituições. Sem justiça não se pode construir uma
sociedade realmente humana (p. 133). Novamente o animus e a anima estão
presentes. As leis foram criadas em um mundo (ocidental) já dominado pelo animus, mais presente no masculino. Tais
leis possuem também seu lado bom e verdadeiramente humano, mas por não
dialogarem, especialmente com a perspectiva da anima, deixaram lacunas. O conceito mais profundo de justiça deve
ser procurado também no que tem a dizer a anima,
mais presente no feminino. E elas (neste ponto o autor cita várias filósofas
e/ou feministas), ao contrário do que alguém poderia imaginar, vão dizer que “o
tema do cuidado e respectivamente da justiça não são temas de gênero, mas da
totalidade do humano” (p. 127). E o que, mais especificamente elas tem a dizer?
A dimensão da anima, da qual a mulher é especial
portadora, capta primeiramente o mundo como valor do que como fato. Ela vê no
fato mensagens e no visível capta o invisível. Ela possui um acesso ao real
mais com o coração do que com a razão [...]. A tese que sustentamos em nossas
reflexões é que o cuidado constitui uma dimensão essencial do humano, mas que
ganha densidade e visibilidade maior na mulher. A condição dela é singular,
sentindo o mundo a partir do significado que este carrega. Esta percepção é
enriquecedora da ética porque leva em consideração o lado não apenas conceitual
e institucional da realidade, mas também a sua densidade cotidiana e valorativa
(p. 127).
Ainda
falando sobre a organização da vida em sociedade, segundo o paradigma do
cuidado, as observações do capítulo onze são necessárias. Boff fala da
importância da educação. Apressadamente, discerne quatro momentos no processo
educativo do mundo ocidental: a educação na idade da razão – crítica; na idade
técnica – criatividade; na idade das opressões – libertação; na idade da Terra
– cuidado. O processo pedagógico nos legou a necessária coragem e capacidade de
criticar, a arte de criar, a humildade de transpor a barreira professor/aluno,
maior/menor, superior/inferior, libertando assim os oprimidos e fazendo-os
participantes da construção do saber; mas, finalmente, resta a pergunta: onde
ficou o cuidado? Na era em que estamos vivendo, a necessidade maior é a de
inserir, ou melhor, discernir a presença e a importância do cuidado na
educação. É preciso aprender e ensinar a cuidar (p. 254). É momento de quebrar
as paredes das salas de aulas e ensinar ao ar livre, deixando que os alunos
contemplem a natureza, estreitando seus laços com ela no campo das ideias
(resgatando a razão sensível e cordial – p. 262). E o próprio campo das ideias,
por sua vez, revelará que já existe uma ligação íntima entre humanidade a Mãe
Terra. A sociedade que surgirá disso será diferente. Será cuidadora. Promoverá
e respeitará a dignidade integral de cada elemento do Todo, e do Todo de cada
elemento.
Cultivar
e compreender a espiritualidade do homem é de suma importância para o cuidado,
pois é através dela, a espiritualidade, que o homem conhece sua conexão com o
Todo. “O extraordinário do homem-espírito é poder entrar em comunhão com Deus”
(p. 190), desenvolver a capacidade de amar e perdoar (p.193), e de compadecer-se
(p. 194) do outro e da Casa comum – a Mãe terra. Espiritualidade é abrir-se ao
mistério do mundo e ao mistério maior, que é a Última Realidade, ou Deus (p.
199).
Discorrendo
sobre o cuidado na medicina e na enfermagem, Boff desenvolve um conceito de
saúde que vai além da concepção biológica. Tal conceito ele chama de equilíbrio
de corpo-mente-espírito-natureza (p. 205). Em suma, a saúde do homem só pode
ser plena se ele estiver de bem com a Terra e se ela estiver bem. Se a Terra
está doente, o homem está doente, e vice-versa. O cuidado na medicina e na
enfermagem é indispensável porque o ser humano, “o doente”, é um corpo-espírito
e espírito-corpo. Tem dignidade. Precisa ser tratado, ou melhor, cuidado como
tal. É o que o autor chama de “visão de totalidade” –
homem-corpo-espírito-Terra. Na visão da totalidade, a doença é vista como “uma
fratura dessa totalidade e a cura como uma reintegração nela” (p. 218). Além
disso, o ser humano é, por natureza, frágil. Prova incontestável de sua
fragilidade intrínseca é a impossibilidade humana de livrar-se do luto. Cedo ou
tarde, ele acontece (e no luto também é necessário um cuidado especial – p.
212-215). Neste sentido, ser saudável não consiste em estar livre de toda e
qualquer fraqueza e sofrimento, “mas em poder conviver com eles com autonomia,
crescer com eles, e se tornar mais plenamente humano” (p. 211).
Boff
conclui a obra defendendo-se preventivamente das críticas, dizendo: “Não são
poucos os que, ao término da leitura deste livro, dirão: há nele coisas belas e
até profundas, mas se trata de uma utopia”. Porém, diz o autor:
Seguramente há
nele muito de utopia, mas de uma utopia necessária. Desta vez, ou a utopia se
transforma em topia, concretizando-se de verdade, ou então nosso futuro comum,
da vida e da civilização, estará em grave risco. Temos que tentar tudo para não
chegarmos tarde demais ao verdadeiro caminho que nos poderá salvar. E esse
caminho passa pelo cuidado e pela sustentabilidade (p. 269).
A
última frase do livro é uma mensagem de esperança e alerta: “Não abandone
jamais a esperança, o sonho e a utopia. O futuro passa por aí” (p. 272).
[1] Resenha
preparada para o curso de Pós-graduação em Aconselhamento Cristão da Faculdade
Teológica REFIDIM, disciplina “Espiritualidade me interface com a teologia do
cuidado”, ministrada pelo professor Me. Claiton Ivan Pommerening.
[2] Leonardo
Boff (1938) doutorou-se em Teologia e Filosofia na Universidade de Munique,
Alemanha, em 1970, sendo autor de mais de 80 livros nas várias áreas
humanísticas.
[3]
Éder Carvalho é formado em Letras Vernáculas pela Unopar Virtual, bacharel
livre em Teologia EaD pela Faculdade Teológica Refidim, e pós-graduado em
Aconselhamento Cristão na mesma instituição.
Excelente texto...
ResponderExcluirParabéns pela resenha
ResponderExcluirParabéns, gostei muito da resenha.
ResponderExcluirObrigado
Parabéns pela sua contribuição. Ficou muito mais fácil de compreender as escritas de Boff. Só tenho a agradecer muito.
ResponderExcluirMuito bom! Obrigada!!
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